14 de Junio de 2024
6988 ISSN 1667-8486
Próxima Actualización: 18/06/2024

O acesso à justiça no âmbito do Mercosul: A efetividade e o processo digital

 
A Regulamentação e Fiscalização da Atividade Econômica na Inter

1. O DIREITO CONSTITUCIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA.

A Constituição da República Federativa Brasileira garante o acesso à justiça, tido como princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, o qual é vazado nos seguintes termos, contidos em seu artigo 5º, inciso XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O sentido dessa norma pode ser encontrado na seguinte afirmação: “Não há, pois, como admitir, v.g., que, em alguns casos, seja retirada do Estado-Judiciário a possibilidade de apreciação de certas lesões a direitos. Tendo o Estado assumido o monopólio da função judiciária, por sua vez, não há como o juiz escusar-se de sentenciar. Inadmissível, ainda, a justiça privada, com o exercício do direito pelas próprias mãos (Correia, 2002, p. 21)”. O que estabelece a norma constitucional é a impossibilidade de subtração, à análise do Poder Judiciário, de quaisquer modalidades de discussão sobre direitos, como já se verificou no passado, com exemplos de proibição de acesso à justiça por questões raciais ou políticas (Nery Jr., 2000, p.95).

Todavia, deve-se discutir o real alcance do direito de acesso à jurisdição, de modo que não seja apenas mero direito em tese. Com efeito, a Constituição garante a todos, abstratamente, o direito de ingresso em juízo. Entretanto, alguns pontos concretos impedem, de fato, que esse direito seja universalmente gozado. Nas precisas palavras de Ada Pellegrini Grinover, “acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo (1996, p. 33)”.

Semelhante posicionamento é o de Daniel Herrendorf e Gérman Bidart Campos: “…el acceso a la justicia no se satisface con dejar y tener expedita la posibilidad formal de acudir ante un tribunal judicial. Hay todo un cúmulo de aspectos que rondan no sólo el acceso fácil y eficaz, sino al proceso con toda la gama de problemas que lo recorren. A ello hay que depararle atención y soluciones útiles. De lo contrario, nos quedamos en el formalismo, y ya sabemos que los derechos personales son cosas de la realidad, de la vida, de la convivencia. Es allí donde deben allanarse los óbices y las dificultades (1991, p.389)”.

Necessário, portanto, a possibilidade efetiva de acesso ao judiciário, com todos os mecanismos processuais voltados para tanto. A Sociologia Jurídica costuma apontar alguns pontos críticos nessa questão: “... os estudos realizados sobre a explosão da litigiosidade obrigaram o rever de algumas idéias feitas sobre [o acesso à justiça]. Por um lado, as medidas mais inovadoras para incrementar o acesso das classes mais baixas em breve foram eliminadas, quer por razões políticas, quer por razões orçamentais. Por outro lado, questionou-se o âmbito da tutela judicial, pois muitas vezes, apesar de seu alargamento, os tribunais continuaram a ser selectivos na eficiência com que responderam à procura da tutela judicial. Nuns países mais do que noutros, o desempenho judicial continuou a concentra-se nas mesmas áreas de sempre. Além disso, o aumento da litigiosidade agravou a tendência para avaliação do desempenho dos tribunais em termos de produtividade quntitativa. Essa tendência fez com que a massificação da litigação desse origem a uma judicialização rotinizada com os juízes a evitarem sistematicamente os processos e os domínios jurídicos que obrigassem a estudo ou a decisões mais complexas, inovadoras ou controversas (Santos, 1996, p. 29)”.

De fato, e a fim de alcançar a efetividade do princípio constitucional do acesso à justiça - principalmente sob o impulso dos estudos de Mauro Capelletti e Bryan Garth - a pesquisa da Sociologia Jurídica centrou-se na tentativa de encontrar os óbices existentes a tal fim. Uma das primeiras etapas dessa tarefa foi a descoberta de três obstáculos tradicionalmente encontrados por aqueles que buscam as Cortes Judiciárias, quais sejam barreiras financeiras, culturais ou de ordem psicológica. Para resolver tais problemas, algumas soluções foram postas em prática em diversos países, inclusive aqueles componentes do Mercosul: serviços de assistência judiciária gratuita; representação de interesses difusos através de demandas coletivas; juizados de pequenas causas; técnicas de conciliação e mediação, etc… (Balate, 1999, p. 448).

Todavia, a problemática do acesso efetivo à jurisdição não reside unicamente nos fatores econômicos e sócio-culturais há pouco ressaltados. A questão pode ser vista atualmente por novo prisma, considerando-se agora o impacto das novas tecnologias nos sistemas judiciários tradicionais, totalmente assoberbados pela burocracia e pela cultura burocrática[1], bem como a crescente integração dos países em blocos regionais, como sói ser o caso do MERCOSUL.

Embora os Pactos de Integração prevejam instâncias judiciárias de decisão sobre conflitos surgidos no seio dos países-membros – no que o MERCOSUL ainda engatinha, caso comparado com a experiência européia -, em termos pragmáticos, principalmente perante a realidade latino-americana, a utilização destes recursos procedimentais não se pode considerar seja consentânea à idéia de acesso efetivo à justiça. O excesso de formalismo e o próprio trâmite burocrático inerente ao processo de integração impedem a concretização daquele primado de justiça.

O debate que ora propomos visa trazer à tona a discussão sobre quais reflexos podem surgir da utilização das novas tecnologias de informática em relação ao acesso à justiça, partindo da premissa de que o chamado processo digital pode contribuir para o aprimoramento deste elementar direito fundamental.[2]

 

2. A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA E SUA INTERPRETAÇÃO FACE A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA: O PROCESSO DIGITAL.

Interpretar, conforme assentado pela doutrina, é atribuir um sentido à norma jurídica. Todavia, a interpretação jurídica não é atemporal, pois modifica-se em consonância com as transformações vivenciadas pela sociedade.

Celso Bastos, manifestando-se sobre a denominada interpretação evolutiva, com enfoque na evolução tecnológica em face da norma jurídica diz que “o desenvolvimento técnico da ciência em geral, com as repercussões que acarreta na vida do indivíduo em sociedade, e que a legislação muitas vezes não é capaz de acompanhar, acaba por propiciar um substrato favorável ao desenvolvimento da interpretação evolutiva. Esta forma de interpretação baseia-se na realidade para, a partir dela, mas sem se descurar dos limites normativos do texto legal, chegar a resultados mais satisfatórios do ponto de vista do nível evolutivo em que se encontra a sociedade (2002, p. 247)”.

No mesmo sentido é o pensamento de Anna Candida da Cunha Ferraz: “Sem contrariar o texto legal da Constituição, admitem-se novos conteúdos ao mesmo, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais, que não estavam presentes na mente dos constituintes quando elaboraram a Constituição. Este o chamado método evolutivo, interpretação evolutiva ou critério evolutivo aplicado à interpretação constitucional (1986, p. 45)”. Embora a aludida jurista não mencione o fator tecnológico como impulso de interpretação evolutiva, cremos ser perfeitamente possível o emprego analógico do raciocínio ali desenvolvido.

A doutrina já começa a perceber os efeitos provocados pela Revolução Digital no âmbito jurídico: “Em épocas mais recentes, a evolução tecnológica tem repercutido no Direito de maneira particularmente acentuada. E o impacto da tecnologia foi tamanho que há quem se refira a uma Idade Tecnológica. Por conta disso, e por estar o Direito atrelado, em sua efetividade, às mutações sociais, opera-se uma verdadeira revolução no mundo jurídico, que se adapta, por assim dizer, aos novos tempos. Pode-se seguramente afirmar que o setor que mais profundamente carece de novas formulações, tendo em vista a prática social, é aquele referente à informática, em seu dúplice aspecto, vale dizer, tanto no que toca ao Direito aplicado à informática quanto à informática aplicada ao Direito. Destaca-se, ainda, dada sua espantosa proliferação, a rede mundial de comunicação de dados, denominada Internet (Bastos & Tavares, 2000, p. 692-693)”.

Em relação à interpretação constitucional do princípio do acesso à justiça, o que se prentende, portanto, é dar contemporaneidade ao adágio de Carlos Maximiliano, segundo o qual “a Constituição aplica-se aos casos modernos, não previstos pelos que a elaboraram (apud Ferraz, 1986, p. 46)”.

A questão do acesso à justiça também pode ser pensada conforme outra corrente de pensamento, que procura tratar das diferentes exigências técnico-processuais aptas a assegurar a implementação desse direito de acesso às cortes e aos tribunais. Essa acepção tem caráter sobretudo técnico, e trata do conteúdo mesmo da garantia que o Estado, principalmente o aparelho judiciário, devem oferecer para assegurar a todos os interessados esse acesso efetivo à justiça. Exemplos de garantias técnicas, nessa acepção, são o direito à obtenção de medidas urgentes para salvaguarda de direitos; o exame contraditório dos fatos; o direito de apelar; o direito de obter um julgamento dentro de um prazo razoável, etc… (Balate, 1999, p. 447-449).

Para Cândido Rangel Dinamarco, compreende-se a técnica como a “predisposição ordenada de meios destinados a obter certos resultados. Toda técnica, por isso, é eminentemente instrumental, no sentido de que só se justifica em razão da existência de alguma finalidade a cumprir e de que deve ser instituída e praticada com vistas à plena consecução da finalidade. Daí a idéia de que todo objetivo traçado sem o aporte de uma técnica destinada a proporcionar sua consecução é estéril; e é cega toda técnica construída sem a visão clara dos objetivos a serem atuados. Técnica processual é, nessa ótica, a predisposição ordenada de meios destinados à realização dos escopos processuais (2002, p. 273-275)”[3].

Como afirma Roberto Dromi, “la tecnología debe asistir al derecho y contribuir instrumentalmente a una mejor administración de justicia. Además del equipamento humano profesionalizado, requiere de instrumentos tecnológicos (1994, p. 44)”. Este é justamente o campo da informática jurídica, ou seja, o estudo da informática aplicada ao Direito. Pretende-se, nesta área, “a análise das formas possíveis de utilização da informática no campo jurídico, mas sempre de maneira a explroar ao máximo os avanços tecnológicos, obtendo-se um alto coeficiente de aproveitamento dos sistemas tecnológicos atualmente disponíveis (Bastos & Tavares, 2000, p. 693)”.

E nesse sentido, em total contrariedade a uma perspectiva de acesso real à justiça, necessário registrar que “el derecho procesal, responsible de la juridización formal, mantiene aún técnicas procedimentales inadecuadas, como son las pluralidades de legitimaciones y de plazos, e innecesariamente hererogéneas, evidenciadas en la multiplicidad de vías procesales en razón de la organización política del Estado y de la naturaleza de los procesos (Dromi, 1994, p. 42-43)”.

O processo digital, nestes termos, é aqui definido como o conjunto de medidas tecnológicas, voltadas para o melhor aproveitamento das fases e atos processuais, de molde a possibilitar uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva. Em suma: a tecnologia a serviço da justiça.

 

3. CONCLUSÕES.

Sob a ótica acima apresentada é que se procura defender que os novos mecanismos tecnológicos, aplicados ao Direito, talvez possam contribuir para a melhora concreta na aplicação e efetivação do referido princípio do acesso à justiça, suprindo as apontadas insuficiências do Poder Judiciário, principalmente no que concerne às questões surgidas no âmbito comunitário.

Assim como Roberto Dromi, “entendemos que el derecho debe ir al encuentro de los objetivos de la comunidad política y reflejar los grandes cambios sociales a través de respuestas a las demandas de la socieadad (1994, p.34)”. Nestes termos, a técnica deve ser posta a serviço dos propósitos estabelecidos na legislação processual e, principalmente, na Carta Constitucional. Em nosso caso específico, vale dizer que a técnica processual deve ser toda empregada no sentido de concretizar o ideal de acesso à justiça, especialmente em relação às questões judiciais surgidas no âmbito de países integrados em blocos regionais.

Ademais, concordamos com Bidart Campos, para quem “si por un lado se mira a la tecnología como deshumanizadora, por el otro es capaz de aliviar o hasta sustituir el esfuerzo físico del hombre, sustrayéndolo del agobio laboral, todo lo que demuestra que, bien empleada y bien integrada en la vasta rede de presupuestos y factores de otra índole (sociales, culturales, económicos), brinda servicios que una buena política de derechos humanos está en condiciones de aprovechar (1991, p. 311)”.

Nestes termos é que deve ser examinada a proposição da utilização do processo digital como mecanismo de efetivação-concretização do princípio constitucional do acesso à justiça, particularmente no âmbito do MERCOSUL.

Caso contrário, ficaremos em situação como a descrita na severa advertência de Ferdinand Lassalle, e a Constituição pode sucumbir às forças reais de poderm, transformando-se em simples folha de papel (2001, p. 33), com a conseqüência de suprimir-se, de fato, o direito de acesso à justiça.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BALATE, Éric. Acesso à justiça, in ARNAUD, André-Jean (org.), Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, 2 ed., trad. WUILLAUME, Patrice, Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

BASTOS, Celso Ribeiro & TAVARES, André Ramos. As Tendências do Direito Público no limiar de um novo milênio, São Paulo: Saraiva, 2000.

BASTOS, Celso Ribeiro Seixas. Hermenêutica e interpretação constitucional, 3ª ed., rev. e ampl., São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002.

BIDART CAMPOS, Germán J.. Teoría general de los derechos humanos, Buenos Aires: Astrea, 1991.

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Direito Processual Constitucional, 2ª ed., Sçao Paulo: Saraiva, 2002.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 10ª  ed., ver. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002.

DROMI, Roberto. Nuevo Estado, nuevo Derecho, Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1994.

FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos Informais de mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais, São Paulo: Max Limonad, 1986.

GRINOVER, Ada Pellegrini et alli, 12 ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1996.

HERRENDORF, Daniel E. & BIDART CAMPOS, Gérman J.. Principios de Derechos Humanos y Garantías, Buenos Aires: Ediar, 1991.

LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição, 6 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6 ed., rev., ampl. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

SANTOS, Boaventura de Souza et alli. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português, Porto: Afrontamento, 1996.



[1] “Pero la cultura burocrática no sólo se da en la administración pública, sino también en la administración de justicia. Ambas comparten el exceso de papeleo y la utilización arcaica del expediente. Administración y justicia viven hoy del, por y para el expediente. Nadie escapa a su dominio. Es el paradigma de la cultura burocrática, que nos indica: dentro del expediente tudo, fuera del expediente nada (Dromi, 1994, p. 47-48)”.

[2] A idéia que pressupõe nossa defesa de um modelo de processo digital como mecanismo de acesso à justiça é a de desburocratização dos procedimentos judiciais pela via da utilização destes mecanismos tecnológicos que serão adiante examinados. A respeito da temática da burocracia como entrave para implementação dos direitos humanos, o que possui direta vinculação com o tema do acesso à justiça – procura-se ampliar o direito de acesso à justiça justamente no afã de concretizar os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados -, ver a excelente exposição dos já citados Daniel E. Herrendorf e Gérman Bidart Campos (1991, p. 361-367).

[3] Sob esta ótica é que vem ocorrendo a reforma da legislação processual civil brasileira. Todas as alterações legislativas neste sentido tiveram como escopo garantir a efetividade do processo (Bastos & Tavares, 2000, p. 434-435)”.

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